segunda-feira, 5 de outubro de 2009

“Por que médico não fica?” Por que trabalhador de saúde não fica?


Com esse título a dissertação de mestrado de Claudia Valentina de Arruda Campos, orientada pela Profa. Dra.Ana Maria Malik e defendida em 2005, na Escola de Administração de Empresas da FGV-SP, demonstra de maneira bastante rigorosa aquilo que muita gente insiste em ignorar: a satisfação do médico no trabalho depende de muitos fatores, sendo o valor do salário pouco determinante, ao contrário do que pensou Taylor um dia.
Esse estudo cruza várias técnicas de pesquisa e chega a resultados avassaladores para quem pensa que o problema de fixação dos médicos tem raiz causal apenas no corporativismo desses profissionais.
Estive no último Congresso Paulista de Saúde Publica em São Jose dos Campos e lá o que mais ouvi foi sobre o problema crônico da fixação dos médicos no Estado de SP. Problema não só de SP, mas do Brasil inteiro. Tenho ouvido de muitos gestores que o problema é a disputa predatória que os municípios vem fazendo uns com os outros na oferta de salários e privilégios. Que é uma questão corporativa, etc. Outros gestores têm colocado a parcerias de OSs na gerência de recursos e de pessoal como alternativa para resolver o problema. Pois bem, este estudo contradiz essas hipóteses, pelo menos no município de SP.
A queda da satisfação dos médicos no trabalho é fenômeno mundial e, de acordo com muitos estudos diz respeito à “proletarização” do trabalho médico e a outros fatores.
Mas vamos ao estudo! Para acessar o trabalho completo este é o link:http://virtualbib.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2438/42290.PDF?sequence=1

Contexto do estudo:
Período de 2001 – 2004
Local: Município de São Paulo
Amostra: 36,2% de todos os profissionais médicos de saúde da família, de 98 dos 198 Serviços de Saúde da Família administrados pelas 12 “Instituições Parceiras” (OS) atuantes no município na época.
Metodologia: foram entrevistados gerentes diretos dos serviços de saúde e das instituições parceiras participantes. Os dados foram confrontados com resultados de questionários de satisfação no trabalho aplicados aos trabalhadores médicos. Foram consultados também documentos oficiais.

Pontos importantes da pesquisa:
"Os principais problemas da área de recursos humanos, do ponto de vista dos
gerentes das IP (Instituições Parceiras) são:
1) Modelo de gestão;
2) Saúde do trabalhador;
3) Gerência das unidades;
4) Problemas referentes à categoria médica (inclui rotatividade);
5) Capacitações;
6) Problemas referentes à categoria dos agentes comunitários de saúde;
7) Dificuldade de implantação de sistemas de controle;
8) Falta de motivação dos profissionais;
9) Falta de integração do funcionário do PSF com a Instituição Parceira;
10) Problemas ligados à jornada de trabalho de 40 horas semanais."
 “O nível de stress (dos profissionais) é muito alto, tanto pelo tipo de problema que enfrentam, quanto pela falta de capacitação para lidar com as situações encontradas. Hoje há mais de 100 afastamentos na instituição por saúde mental, meio porcento do nosso quadro. Duas categorias são as mais atingidas, agentes comunitários e médicos. Os agentes comunitários porque trabalham diretamente com a população, estão muito expostos, e os médicos em função de sua formação inicial. Ele é formado para ser especialista, aí se depara com a pobreza, com dificuldades sem solução ao seu alcance, e deprime.” (IP VIII)
“O principal problema de RH é a condição de trabalho que os profissionais enfrentam (...) muita gente na comunidade não aceita o projeto. O processo de trabalho tem valor, mas a comunidade não reconhece. O ACS é o que mais sofre. Ele convive com uma população muito agressiva, está muito exposto a riscos e enfrenta situações muito difíceis. Tem havido muito afastamento por depressão. Ele se apropria dos problemas do vizinho e não sabe como fazer com aquilo. A questão da saúde mental também afeta outros profissionais, mas é mais presente no ACS. ” (IP IV)
“Temos muitos casos de médicos que adoecem no trabalho e consideramos que possa ser provocado pelo próprio trabalho.” (IP III)
“Um dos problemas enfrentados pelos médicos é que eles não possuem uma atuação definida. O que é ser médico do PSF? Muitos acham que é agendar consultas, e ficam apavorados em ter de cuidar de mais de 3.000 pessoas. Acham que têm de fazer o atendimento individual de cada um de sua área para fazer o diagnóstico da região. Não há um “protocolo” do que faz um médico do PSF. Eles ficam perdidos.”(IP XI)
“O problema da rotatividade é causado pela falta de prestígio da profissão. Ser médico do PSF é visto pela categoria médica como um fracasso profissional. Eles dizem o seguinte: ‘Eu sou médico, mas eu estou trabalhando no PSF’. É visto como uma instância inferior da medicina.” (IP II)
“O índice geral de rotatividade dos médicos do PSF, de julho 2004 a junho de 2005, no município de São Paulo, foi de 37,4%.”
“As hipóteses dos gerentes das IP sobre os fatores que levam à rotatividade dos médicos do PSF, são as seguintes:
1) Fatores referentes ao profissional
2) O modelo do PSF em São Paulo
3) Fatores externos – violência e distância
4) Condições de trabalho
5) Desprestígio da profissão
6) Stress”
“O estudo confirmou a hipótese da existência de correlação entre satisfação no trabalho e rotatividade dos médicos do PSF, no município de São Paulo.”
“Os fatores de satisfação no trabalho que apresentaram maior correlação com a rotatividade foram capacitação, distância das unidades e a disponibilidade de materiais para realizar o trabalho.”
“Quanto ao salário dos médicos do PSF, a pesquisa indica que o salário atrai os profissionais, mas não os fixa.”
“Também se verificou que a distância das unidades é um fator importante na determinação da rotatividade, mas que ações isoladas, com o oferecimento de transporte para os profissionais, não resolvem o problema.”
“Sobre o grau de satisfação no trabalho dos médicos do PSF, constatou-se que a satisfação no trabalho da categoria como um todo é boa (74,7/100).”
“Foi encontrada variação de resultados no grau de satisfação no trabalho por Instituição Parceira (de 71,0 a 77,3/100).”
“Apesar da satisfação no trabalho média ser alta, a média não resolve os problemas causados por indicadores de satisfação que apresentam baixo resultado.”
“Os indicadores de satisfação no trabalho dos médicos do PSF com piores resultados (abaixo de 50/100) foram: stress, ambiente físico e capacitação.”
“A disponibilidade de materiais para realizar o trabalho veio a seguir (54,4/100).”
“Os indicadores de satisfação no trabalho dos médicos do PSF que alcançaram
níveis de excelência (acima de 90/100) foram os indicadores de trabalho em equipe  (fazer parte de uma equipe, participar de reuniões de equipe regulares).”
“Os gerentes das IP consideraram como sendo os maiores problemas na área de RH do PSF, em São Paulo: o modelo de gestão adotado no município para o PSF; a saúde do trabalhador, em especial a saúde mental dos ACS; a gerência das unidades; e problemas referentes à categoria médica, com destaque para a questão da rotatividade, em quarto lugar.”
“Sobre as hipóteses dos gerentes quanto aos fatores que levam à rotatividade, destacaram-se fatores referentes aos próprios profissionais.”
“A hipótese que apareceu com maior freqüência foi a demissão para cursar residência médica.”
 Todavia, “a pesquisa de satisfação no trabalho dos profissionais, foi encontrada baixa correlação entre o percentual de profissionais com residência médica por IP e a rotatividade. Nos meses do final e do início do ano (dezembro, janeiro e fevereiro), período em que os médicos se demitiriam para cursar residência, foi encontrado um índice de rotatividade mais baixo que no resto do ano. Nesta medida, os dados fornecidos pelas próprias IP contradisseram suas falas.”
“Considerou-se que o discurso padronizado dos gerentes pode ser decorrente de um processo de isomorfismo mimético entre as IP. (DIMAGGIO & POWELL,
1983).” 
“Ao final do trabalho foi encontrada uma alta correlação entre o índice do rotatividade dos médicos do PSF e o prestígio da IP na área hospitalar. Esse foi o fator mais relevante na determinação da rotatividade. É possível que o desprestígio social em ser médico do PSF, descrito por um dos gerentes das IP, seja compensado, em certa medida, pelo prestígio da IP junto à categoria médica, e que muito do que se considera prestígio nesta categoria encontra-se vinculado à área hospitalar.” 
“Alguns pontos merecem ser destacados, em função de se constituírem em potenciais objetos de novos estudos. Constatou-se que, enquanto os médicos do PSF apresentam um alto índice de rotatividade, os enfermeiros parecem apresentar uma rotatividade muito mais baixa. Dada a dificuldade de fixação da categoria de enfermagem, do ponto de vista global, com a intensa migração de profissionais, especialmente entre países anglo-saxões, consideramos que isso mereça ser investigado.” 
“A questão da saúde do trabalhador no PSF, em especial os problemas de saúde mental do ACS e do médicos, destacou-se dentre os problemas da área de RH das IP. Um estudo sobre os fatores que têm levado ao burnout destes profissionais seria interessante e útil para o desenvolvimento de políticas voltadas para a saúde do trabalhador.” 
“E o último ponto a ser destacado, são as diferenças existentes entre os modelos do QUALIS e o do PSF, em São Paulo, não apenas do ponto de vista de processos, mas também de resultados.” 
"Alguns dos desafios presentes no Programa de Saúde da Família em São Paulo, também puderam ser verificados no processo de pesquisa. Um importante desafio encontra-se nas relações existentes entre o poder público e as instituições privadas, ou seja, entre SMS e IP."
"Os elevados índices de rotatividade das IP põem em questão a premissa da eficiência existente no modelo gerencial, quando se refere à administração no setor privado."
"Finalmente, mais um último desafio colocado para o PSF, e que se sobrepõe às decisões municipais, encontra-se na falta de articulação entre as diversas instâncias do poder público, no que se refere às parcerias para a implantação do PSF."

Esse estudo poderia ser ampliado para todos os trabalhadores de saúde, em especial na Atenção Básica. Temos algo a aprender com esses “achados”? Vamos lá Sr@s trabalhadores e Sr@ gestores!!!!!

2 comentários:

  1. É uma questão realmente instigante.
    Fica a pergunta como lidar com a questão do contato com a miséria, com a pobreza e com a violência. Estruturalmente temos que entrar na formação dos profissionais (médicos e ACSs) e mesmo na estrutura política da sociedade que permite o aprofundamento das desiguldades, mas isso é projeto de 20 anos. E pra agora? Apenas nossas ferramentas gerenciais dariam conta? Colegiado gestor? Balint? ER?
    Sei lá...
    Sem contar que mesmo a difusão dessas ferramentas é difícil. Ainda mais em uma cidade tão fragmentada como São Paulo.

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  2. OLá a todos! Aqui está uma proposição a propósito de uma experiência no mundo do trabalho em saúde. São Paulo, a Metrópole Caos.
    Se os achados relatados são reflexo de uma realidade, há que se proceder a observação-ação em outras realidades. Vou ler a pesquisa inteira e depois falo. Aqui vão primeiras impressões.
    1) Não se muda trezentos anos de História com a adoção de uma estratégia radicalmente antagônica com os modelos criados por esta mesma História.
    2) As instituições formadoras então no centro da problemática. Nelas, os médicos são formados para atuar numa espécie de Pandora (do filme) idílica. Formam-se. Tornam-se infelizes e persseguem a tal árvore do filme até o fim de suas vidas. Formamos médicos para mimetizar um Dr. Kildare ou Ben Casey tupiniquim.
    3) Médico nunca fica desempregado. O SUS é co-responsável por isto como maior empregador da categoria que é.
    4) O trabalho médico é por essência e dependendo do lugar do exercício criador de personalidades dilaceradas pelo sofrimento alheio transmutado no do próprio. Daí a incidência enorme de adicção e suicídio explícito ou disfarçado.
    De qualquer maneira penso que podemos utilizar os achados na pesquisa para testar sua vercidade teleológica.
    Saudaçoes SUSeanas.
    Carlos Rivorêdo

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