segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Adesão/Não-Adesão - O que está em jogo?

Esta semana li o artigo intitulado: “Produção bibliográfica sobre adesão/não-adesão de pessoas ao tratamento de saúde” das autoras Annelita Almeida Oliveira Reiners; Rosemeiry Capriata de Souza Azevedo; Maria Aparecida Vieira e Anna Lucia Gawlinski de Arruda, do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica, Universidade Federal de Mato Grosso. Artigo publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, vol13, 2008.
O artigo traz uma revisão crítica da produção bibliográfica latino-americana, no período de 1995 a 2005, acerca da adesão/não-adesão ao tratamento de pessoas portadoras de problemas crônicos de saúde: hanseníase, tuberculose, hipertensão, diabetes e aids.
Alguns trechos interessantes do artigo:
“Foram analisados 36 artigos, identificando-se as variáveis: ano de publicação, área de publicação e tipo de estudo. A maior parte dos artigos (27) foi produzida por profissionais da área de Medicina em estudos epidemiológicos e da área de Enfermagem (7) em estudos qualitativos e quanti-qualitativos. A produção científica sobre o assunto cresceu até 2002, caindo a partir desse ano.”
“Nas definições descritas pelos autores, a idéia recorrente foi a de que o papel do paciente é o de ser submisso às recomendações dos profissionais de saúde e que ele tem autonomia para seguir ou não o tratamento, mas o profissional exime-se da responsabilidade sobre as conseqüências dessa decisão.”
“A maioria dos fatores apontados pelos autores como contribuintes para a não-adesão está relacionada ao paciente, mostrando que a maior carga de responsabilidade pela adesão/não-adesão é conferida a ele (quadro 1).”
“As medidas assinaladas pelos autores para a resolução do problema permitem a identificação da responsabilidade dos profissionais, serviços de saúde, governos e instituições de ensino (quadro 2).”
“A investigação também mostrou que as idéias de adesão/não-adesão contidas nos textos revelam uma concepção reduzida do papel do paciente no seu processo de aderir ao tratamento, pois o considera submisso ao profissional e ao serviço de saúde e não como um sujeito ativo no seu processo de viver e conviver com a doença e o tratamento.”
Frente aos achados publicados neste artigo, poderíamos colocar uma questão: O que está em jogo nessa maneira de fazer clínica?
Certamente um dos fatores é o poder do saber do profissional de saúde que parece ser colocado superior aos outros, mesmo que todas as evidências indiquem sua insuficiência frente às questões de saúde.
A questão do modelo de atenção raramente é colocada em questão em sua relação direta com a problemática da adesão. O modelo do atenção centrado no atendimento individual e ambulatorial, predominante no Brasil, teria alguma influência sobre a problemática adesão/não-adesão?
Endereço do artigo: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000900034

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Questões para o uso do PTS como ferramenta no apoio

Questões para o uso do PTS como ferramenta no apoio

A montagem das oficinas de PTS – uma maneira de fazer como oferta

Os processos aqui descritos foram desenvolvidos em atividades de apoio institucional, apoio à gestão, assessorias técnicas prestadas e projetos de pesquisa realizados em serviços de saúde do SUS, municípios brasileiros, em especial no Estado de SP. São extratos de vários materiais de trabalho que a meu ver apontam para questões importantes na formulação e uso do PTS como ferramenta inscrita na lógica do apoio.

A questão do uso de roteiros para o PTS

Tendo a partir da própria organização do espaço de encontro, criando oficinas de discussão de casos e formulação de PTS, nas quais se procure auxiliar na “resolução do caso” e, ao mesmo tempo, cuidar da construção do próprio espaço coletivo.

Uma das grandes dificuldades enfrentadas nessa prática é lidar, de um lado, com a necessidade de melhorar a sistemática das discussões, expressa pelos participantes, e de outro, com o risco que a utilização de roteiros de discussão pré-formatados traz de compartimentalização e empobrecimento das discussões. A estratégia para lidar com essa questão tem sido a de construir roteiros junto com os próprios participantes, ao longo de várias oficinas, que auxiliem na organização das discussões, na democratização do direito de falar e emitir opinião, na resolução de questões éticas emergentes no grupo, nas trocas e nas relações saber-poder em disputa naquele espaço e no cotidiano dos serviços. Considero esta uma das formas de expressão do agir comum que dá corpo à co-produção/co-gestão desses espaços coletivos. Ao cabo de todo o processo de oficinas se acumula certo roteiro geral, que serve apenas como ferramenta auxiliar para a organização das discussões de PTS, com ênfases diferenciadas de acordo com a demanda de discussão a cada momento.

A aposta é a criação de espaços de encontro com características que façam conectar afetos de forma construtiva e inventiva, permitindo a emergência de novas possibilidades de análise e superação das dificuldades cotidianas.

O que pode ser discutir um caso? A questão do singular

Uma narrativa pode ser tomada como um “caso padrão” – uma caso de saúde mental, um caso de violência doméstica, etc. – que se “destaca” de um “pano de fundo estrutural” - de uma regra geral – para rebatê-lo a uma identidade transcendente à priori. Desse modo, “uma operação do pensamento ou de uma forma de narrativa que toma a diferença a partir da semelhança” (Passos e Barros, 2008, p.10).

A “singularidade” de um caso, muitas vezes significa, para as equipes, um procedimento de identificação de particularidades nele contidas, as quais, lança a equipe num campo de variáveis, que são, de imediato estabilizadas, pelo hábito/senso comum ou pelo filtro teórico (Cunha, 2005)/ideológico, remetendo novamente a idéia de “caso padrão”.

O conceito de risco, por exemplo, possibilita essa manobra de estabilização das variáveis de um caso por identificação. A equipe separa um caso de “baixa-adesão” ao tratamento de hipertensão. A própria denominação geral do caso já indica um critério entendido, muitas vezes, como “risco” pelas equipes. Discute-se o caso e a troca de informações vai enriquecendo de atributos de particularização aquela denominação geral inicial: 68 anos, mora na zona rural, tabagista, alcoolista, não faz dieta, etc.

Seja qual for a motivação (teórica/ideológica/moral...) a equipe, com esse procedimento, apenas acrescenta características de identificação que tornam o caso mais compatível com as referências prévias da equipe. O que se trabalha, quando muito, são as novas associações possíveis entre essas variáveis.

Outra maneira de entender a singularidade é pensar que, ao invés de identificar a singularidade do caso, vamos acessar a singularidade do caso, ou mais precisamente, vamos participar da singularização do caso. Para isso, se procederá mais por “desmontagem” das narrativas. “Do caso extrai-se a agitação de micro-casos como micro-lutas nele trazidas à cena”.

Naquele momento no qual a equipe vai entrando em contato com as “particularidades” do caso, quando ela é lançada num campo de variáveis instáveis, ao invés de forçar a estabilização dessas variáveis relacionando-as, por identificação imediata ao conhecido, a equipe deve aprender a exercitar confrontá-las com o conhecido. Forçar, com prudência, a desestabilização de seu próprio território de certezas no confronto com as variáveis do caso. Esse confronto produzirá desconfortos, estranhamentos, afecções nos corpos, “colapso” (Varela, 2003), criando condições para o acesso à “espessura política da realidade do caso” (Passos e Barros, 2008) e para o surgimento de outros universos de possibilidades:

O fundo aqui deixa de ser uma figura subjacente, tal como uma estrutura geral, para ser um plano de dissolvência que se alcança pela desmontagem do caso. Engorda e desmontagem, aumento de quantum intensivo e debreagem da realidade. A dissolvência é a experiência de desmontagem do caso, a sua desestabilização geradora de fragmentos intensivos, de partículas de sentido que se liberam, que são extraídas do caso. O caso molar se moleculariza. Sua forma dá passagem às forças que o habitam. O caso é, nesse sentido, o caso de um devir. Essas partículas emergentes pela desmontagem permitem a experiência clínica do traçado de uma linha de fuga, uma linha de criação para outro território existencial possível (outro mundo possível como dizíamos no Fórum Social Mundial). Engordando e desmontando o caso, são mil casos que se configuram (p.12).

Acessar a singularidade de um caso é criar sentidos e relações onde já não estão mais prioritariamente em jogo a adequação do usuário ou da equipe a um plano de normalidade da vida e sim ao plano investido da própria vida.

As equipes de saúde e o desenvolvimento de uma prudência – a inclusão necessária do dissenso

Emergiu nos grupos a constatação de que, na perspectiva do que se propõe na formulação do PTS, não havia propriamente a consideração e a discussão das diferentes hipóteses explicativas de cada caso e sim uma discussão superficial e factual (algumas vezes tendendo à banalização do sofrimento dos usuários) que se detinha em informações, as quais eram processadas pelos profissionais de forma isolada. Em outras palavras, a discussão do caso se restringia, muitas vezes, a trocas de informações. Depois, cada profissional interpretava isoladamente as informações colhidas e formulava intervenções segundo seu núcleo ou sua situação hierárquica na equipe. Essa emergência nas primeiras oficinas de discussão de PTS surgiu em meio às manifestações de descontentamento de alguns trabalhadores que tinham em mente outras hipóteses explicativas e, conseqüentemente, não acreditavam na possibilidade de sucesso das intervenções desenhadas pelo restante da equipe. Outra forma de emergência foi a existência de mecanismos de sabotagem operados por alguns desses trabalhadores, principalmente quando se ia a campo realizar as ações planejadas no PTS.

Certa vez, em discussão de caso que participei em um município paulista, tínhamos em cena uma senhora muito debilitada, acamada e dependente de cuidados domiciliares e seu único cuidador era seu filho de vinte e poucos anos de idade, usuário de drogas que cuidava da mãe mais ou menos bem quando estava bem e não cuidava quando não estava. A equipe já acompanhava o caso há quase um ano e ultimamente o filho ficava mais da metade da semana sem conseguir prestar cuidados suficientes à mãe. Durante a discussão, uma das auxiliares de enfermagem da equipe fez uma apaixonada defesa da necessidade da equipe investir no tal filho para que ele desse conta de cuidar da mãe. Imediatamente uma outra auxiliar de enfermagem levantou-se e começou a gritar com a colega afirmando enfaticamente que o melhor para aquela senhora era ser institucionalizada numa casa de repouso. Deu-se então o desgastante e demorado enfrentamento de opiniões e o resultado foi que metade da equipe ficou de um lado e a outra metade de outro. Ficaram ou já estavam? Qual seria a importância dessa discordância para o fortalecimento e crescimento da própria equipe? Em geral, isso é motivo suficiente para um ato de autoritarismo do gestor, ou para destruir o sentido de equipe no trabalho, ou para aqueles mais sensíveis adoecerem, ou para vários pedidos de transferência, ou para a indicação de um profissional de fora que vai fazer “dinâmicas apaziguantes” com a equipe. Todavia, poderíamos colocar em análise o porquê do dissenso ser tão demonizado quando se fala de trabalho em equipe.

Se apenas nos detivermos às questões que o caso suscita poderíamos pensar que é exatamente o dissenso que crava o limite ético à equipe e pode até mesmo protegê-la de atos danosos a si e ao outro. Considerando que a equipe continue discutindo e alguém chegue à conclusão – como foi nesse caso – que a equipe não tem toda a governabilidade para tomar essa decisão e mesmo que tivesse isso levaria algum tempo. Considerando a necessidade de manter cuidados domiciliares a esta senhora um consenso nessa equipe. As atividades desenvolvidas poderiam ser alimentadas de um posicionamento ético prudente e produtor de cuidados a todos (equipe e usuários) envolvidos na situação. A equipe passaria a manter os cuidados domiciliares, investindo todas as suas energias em um novo comum, buscando melhora da situação, sabendo que conta com pessoas na própria equipe que sinalizarão se se aproximar o momento de mudar de estratégia e, se for o caso, buscar outras possibilidades para viabilizar os cuidados a tal senhora. Teríamos, dessa forma, um novo cenário, no qual a equipe estaria se autorizando a investir afetivamente nos cuidados, mas não de maneira imprudente, pois encontra nela mesmo o dissenso necessário para saber quando parar e mudar de atitude/estratégia, com relação ao caso. O dissenso ao invés de desautorizar e impedir é uma mola para a ação implicada na transmutação de si e mundo.

Todo esse movimento criou novas condições para a equipe continuar em relação com estes usuários, mas já em outro tom. A continuação do contato e da relação trouxe outras vizibilidades e dizibilidades a situação. Ao longo do caminho foi permitido pelo grupo outras maneiras de ver a situação do filho, das drogas, da rede social, etc. Ao final, não foi preciso que a senhora deixasse sua casa e seu filho. Ela melhorou fisicamente, o filho contribuiu com o que pode, a equipe também e, depois de quase um ano, ela morreu em casa durante o sono.

Referências

Passos, E.; Barros, R.B. Por uma política da narratividade. 2008. Prelo.

Cunha GT. A Construção da Clínica Ampliada na Atenção Básica. Saúde em Debate.
São Paulo: Hucitec. 2005.

Varela, F. O reencantamento do concreto. Cadernos de Subjetividade, 1(1),2003, 72-86.

Aberto ao Debate!!